“Miquelina cravava as unhas no braço gordo da Iolanda. Em torno do trapézio verde a ânsia de vinte mil pessoas. De olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho. Delírio futebolístico no Parque Antártica.”
É assim que o escritor brasileiro Antônio de Alcântara Machado (1901-1935) descreve o clima entre os torcedores para a partida (?) fictícia entre os arquirrivais Palestra Itália e Corinthians, no conto “Coríntians (2) Vs. Palestra (1)”. A personagem Miquelina se empolga na arquibancada ao gritar pelo namorado Rocco, jogador do Palestra, enquanto outro possível interesse amoroso, Biagio, fazia o gol da vitória do adversário. O texto está presente na coletânea “Brás, Bexiga e Barra Funda”. Editada em 1927, a obra passeia pelo cotidiano de bairros de forte presença da colônia ítalo-brasileira na cidade de São Paulo, e não por acaso um de seus capítulos é inteiramente dedicado ao futebol.
Pois, se foi Charles Miller, um paulistano filho de um escocês, aquele que deu o pontapé inicial ao futebol no país quando voltou da Inglaterra, os imigrantes italianos foram fundamentais para sua popularização, levando-o para além das fronteiras dos clubes. Imigrantes que mal poderiam imaginar que estariam fomentando, ali, um futuro gigante do esporte - que, décadas e décadas depois, travaria alguma batalhas históricas com a própria Itália nas Copas do Mundo da FIFA.
Oriundi
“O brilhante jornalista Thomaz Mazzoni, autor de inúmeros trabalhos sobre a evolução do futebol noBrasil, diz que nos primórdios a modalidade, por ter um caráter elitista, era vista como um evento social. Tal qual ir ao cinema ou ao teatro. Escolhia a melhor peça e não havia uma identidade consolidada com as agremiações, mas sim com o espetáculo”, afirma ao FIFA.com Fernando Galuppo, historiador e jornalista, autor de livros sobre a história de clubes de origem italiana.
A disseminação do futebol em São Paulo aconteceu por meio da criação de clubes de operários de grandes fábricas, que, no princípio, mal tinham uma sede e se aproveitavam de campos muitas vezes improvisados nos bairros para construir, aos poucos, sua história. Em volume maciço, os colonos italianos, que inicialmente vieram para trabalhar nos cafezais pelo interior brasileiro e, depois, se concentraram nas cidades, com diversas ocupações, tiveram um papel decisivo nesse processo.
Fundado em 1914, o Palestra Itália se tornou o representante mais expressivo para aqueles conhecidos como os oriundi. Com todas as reuniões conduzidas em italiano até 1930, o clube adquiriu em 1920 o estádio Palestra Itália, também conhecido como Parque Antárctica – aquele do conto de Alcântara Machado e hoje em processo de remodelação –, e se expandiu consideravelmente com o passar dos anos. Colecionou títulos a ponto de ultrapassar, e muito, os limites da colônia. Mas já com outro nome.
Durante a 2a Guerra Mundial, por decreto do governo de Getúlio Vargas, estava proibido que qualquer entidade adotasse em sua nomenclatura os países do chamado Eixo: Alemanha, Itália e Japão. A agremiação optou, então, por Palmeiras, mantendo a letra inicial de seu distintivo. Pelo mesmo processo passou outra Societá Sportiva Palestra Itália, essa de Belo Horizonte. Fundada na capital mineira em 1921, o clube, que também cresceria de modo substancial, assumiria o nome deCruzeiro, em referência à constelação Cruzeiro do Sul, presente na bandeira brasileira e de diversos países do Hemisfério Sul.
Uma outra história
Competitivo em suas primeiras décadas, mas sem conseguir acompanhar o fôlego e a expansão de seus, digamos, conterrâneos, se distanciando da elite do futebol brasileiro ou paulista, mas com forte atuação social, o Clube Atlético Juventus, também de São Paulo, ao menos conseguiu manter seu nome. Quer dizer, o título que adotou em 1930, depois de jogar por seis anos como o Cotonifício Rodolfo Crespi Futebol Clube, estampando em seu uniforme o nome da empresa que dava apoio às atividades extracurriculares dos funcionários mais talentosos com a bola no pé.
“O Juventus nasce como um espaço de entretenimento para os funcionários do Cotonificio Rodolfo Crespi. Ele seguia um padrão menos competitivo que os demais clubes e sua estrutura era baseada no conceito do OND italiano – Organizazione Nazionale Dopollavoro”, relata Galuppo, um dos autores do livro “Glórias de Um Moleque Travesso”, lançado neste ano, contando a história do clube, ao lado de Angelo Eduardo Agarelli e Vicente Romano Netto.
Agora um detalhe: o clube era chamado Juventus, mas jogaria com a cor grená do Torino, arquirrival da Juve. Como aconteceu isso? Depois de o Conde Rodolfo Crespi ter assistido ao clássico de Turim em uma viagem pela Itália, sugeriu a adesão à nomenclatura da Vecchia Signora, e, a princípio, suas cores seriam mesmo preto e branco. Naquela época, porém, a associação à qual era filiado já contava com muitos alvinegros em suas fileiras, como o Corinthians e o Santos. “Diante dessa situação, o CA Juventus procurou uma cor sem semelhantes naquela divisão. Por sugestão de seu maior benfeitor, que já havia sugerido a modificação do nome para o de sua preferência, acabaram por optar pelas cores grená e branco, justamente as do Torino”, escrevem os autores.
E por que Moleque Travesso? Bem, esse foi um apelido dado por Thomaz Mazzoni no jornal “A Gazeta Esportiva” para o clube estreante do Campeonato Paulista, que gostava de aprontar contra os grandes. A começar por uma goleada por 4 a 2 sobre o Corinthians em 1937, quebrando uma invencibilidade de 35 jogos do oponente, em seu campo, o Estádio Conde Rolfo Crespi, ou Rua Javari.
Localizado no bairro da Mooca, o estádio ocupa um terreno cedido por Rodolfo Crespi em 1925 na então “Alameda Javry”, atual rua Javari. Com capacidade para cerca de 4 mil pessoas, reinaugurado em sua atual versão em 1941, não possui refletores e funciona não só como a casa do Juventus, mas um templo romântico na Zona Leste de São Paulo. É lá que Pelé afirma ter marcado o gol mais bonito de sua carreira, em 2 de agosto de 1959, em goleada do Santos por 4 a 0.
A jogada inteira, que consistiu na aplicação de um drible de meia-lua seguido por três chapéus dentro da grande área e a conclusão de cabeça para a rede, é tão mítica – e folclórica, ao mesmo tempo – que, nas anedotas dos livros históricos, esta observação se faz recorrente: “Se todos que garantem ter visto o golaço de Pelé estivessem realmente na Javari, o estádio teria ganhado surpreendentemente as dimensões do Maracanã por um só dia”.
Cá e lá
A Javari, claro, não reuniu tantas pessoas assim naquele dia, mas estava sempre lotada para ver o Juventus desafiar as grandes potências paulistas. Só não eram apenas os estádios menores a ter o privilégio de superlotação. A essa altura, o futebol já se apresentava uma verdadeira instituição nacional – o Brasil vinha da conquista da Copa do Mundo da FIFA 1958, liderado pelo próprio Pelé.
Naquele torneio, antes de o prodígio de 17 anos ser alçado a Rei, o primeiro gol brasileiro foi anotado por José João Altafini, o Mazzola, contra a Áustria. Ele ainda voltaria a balançar a rede naquela partida, mas perderia em breve a posição de titular. Quatro anos depois, no Chile, ele voltou a uma Copa, mas já com a camisa da Itália. Ex-jogador do Palmeiras, transferiu-se depois de seu primeiro Mundial para o Milan, clube que defendeu até 1965. Ainda passou por Napoli e Juventus e virou uma personalidade importante da crônica esportiva do calcio.
"É muito simples. Naquele tempo, o Brasil não chamava quem jogava no exterior. Ninguém. Eu, com 23, 24 anos, ficaria muito chateado se perdesse um Mundial. Não fui eu que deixei o Brasil. Foi oBrasil que me deixou", afirmou Mazzola ao jornal “Lance!”.
Esse, contudo, não era o primeiro caso de um brasileiro a defender a Squadra Azzurra. No fim, a influência italiana no nascimento de uma potência também resultaria em frutos para o país, agora acolhedor de um tipo bem específico de imigrantes: os craques. O ponta-direita Anfilogino Guarisi, ou Filó, foi o primeiro deles, tendo vestido sua malha na conquista da Copa do Mundo da FIFA 1934. Ele participou da primeira partida, uma goleada por 7 a 1 sobre os EUA.
Revelado pela Portuguesa, Guarisi atuou por Paulistano e Corinthians antes de se mudar para a Lazio, pela qual jogou de 1931 a 1937. Neste período na Itália, quando olhava para o lado nos treinos, poderia muito bem achar que ainda estava em seus tempos de Filó, em São Paulo. Afinal, eram mais quatro companheiros de Corinthians, com destaque para o defensor Del Debbio. E não ficava só nisso – todos eles, na verdade, faziam parte de um elenco que viria a ser chamado de “Brasilazio”.
Numa ação raríssima, o clube romano contratou mais de um time inteiro de brasileiros, muitos deles vindos dos dois Palestras, para a temporada 1931-32. Eles foram dirigidos por um dos ex-corintianos, Amílcar Barbuy, que dividiu as funções de técnico e atacante – embora, supostamente aposentado, só tenha ido a campo por necessidade do elenco, devido a uma série de lesões. O experimento, porém, não deu muito certo, tendo o time lutado contra o rebaixamento.
Nos anos 40, Orlando (Fantoni IV), irmão caçula de João e Leonízio, deu sequência a essa história, defendendo a Lazio por uma temporada. Houve ainda o Fantoni V, Fernando, filho de Ninão, um defensor que chegou a treinar pela equipe em 1955, disputou amistosos, mas não participou de partidas oficiais devido a um limite para inscrição de estrangeiros.
Dos Fantoni, Nininho participou de treinos com a seleção que jogou o Mundial de 1934, mas foi cortado da lista final junto de Guarisi. Hoje, quase 80 anos depois, o volante Thiago Motta, revelado justamente pelo Juventus, é um dos que sonha com uma convocação pela Azzurra para a Copa das Confederações da FIFA, na qual Brasil e Itália têm mais um clássico programado, em Salvador, no dia 22 de junho. É a chance para mais Miquelinas e outros tantos oriundi irem para o estádio e se esbaldarem. Nessa relação íntima, afinal, todos já saíram ganhando.
Por FIFA.com
21/Outubro/2023
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